domingo, 3 de junho de 2012

CARTÓRIOS NO BRASIL • FUNÇÃO PÚBLICA OU FEUDO?

Ângelo Barbosa Lovis e Igor França Guedes
ÂNGELO BARBOSA LOVIS é Procurador do Distrito Federal e Membro da Associação Nacional em Defesa dos Concursospara Cartórios (ANDECC).

IGOR FRANÇA GUEDES é Membro da Associação Nacional em Defesa dos Concursos para Cartórios (ANDECC).


Quase cento e trinta anos se passaram e a discussão ainda é a mesma... A história do notariado e dos registros públicos é tão densa quanto antiga. Essas atividades originaram-se para atender os imperativos sociais de segurança e estabilidade nas relações interpessoais, jurídicas ou não, permitindo-se, assim, a perpe­tuação no tempo de negócios privados e a preservação dos direitos daí derivados. Como observa Aliende, “é o escriba, encontrado na civilização egípcia e no povo hebreu, o antepassado do notário”.1

O desenvolvimento dessas atividades nos países que adotam órgãos de fé pública, ao redor do mundo, está caracterizado pelo exercício privado de funções públicas. Assim ocorre, em maior ou menor escala, na Itália, na França, na Espanha, na Alemanha, em Portugal. No Brasil, salvo fracassadas experiências em contrário, como as estatizações de cartórios feitas nos Estados da Bahia e do Acre, o exercício da função pública notarial e de registro também se dá em caráter privado, por particulares em colaboração com o Poder Público – delegados de ofício público.

Com efeito, dentre os sistemas notariais existentes, o mais difundido, e ainda em franca expansão, é o sistema de documento público (também conhecido, devido à sua origem, como sistema do notariado latino2). Este caracteriza-se, principalmente, pelo fato de serem os serviços notariais exercidos em caráter privado, mediante delegação estatal, critérios bem explicitados na Resolução de 18 de janeiro de 1994, do Parlamento Europeu.3

No Brasil, Brandelli4 lembra que a legislação sobre os serviços notariais e de registros manteve-se estática por muito tempo, regida pelas Ordenações Portuguesas, que estabeleciam competir ao Poder Real a nomeação dos tabeliães no País. Aliende acrescenta que tais cargos “eram providos por doação, com investidura vitalícia, podendo ser obtidos por compra e venda ou sucessão causa mortis, sem preocupação com o preparo ou aptidão para o exercício da função”.5 Esse recurso possibilitava à Coroa assegurar lealdades e recompensar aliados.

A política brasileira de tratar o notariado e os registros públicos como verdadeira moeda de troca ou de posicionamento estratégico de aliados conduziu a doutrina especializada estrangeira a denominar a área como de “evolução atrasada ou frustrada” no País, e também se deve a esse descaso o profundo desconhecimento da população em geral e da comunidade jurídica, em especial, acerca da função notarial e de registro, até os dias de hoje.

No entanto, desde o Brasil Império, diversas iniciativas normativas foram tomadas no sentido de tentar romper com essa esdrúxula realidade.

Já em 28 de abril de 1885, o Imperador Dom Pedro II tornou público o Decreto nº 9.420, o qual, em regulamento anexo, introduziu, pela primeira vez no ordenamento jurídico nacional, a exigência de concurso público para o provimento dos mencionados ofícios (art. 1°). Pouco tempo depois, em 14 de julho de 1887, o art. 1° do Decreto nº 3.322, da lavra da Princesa Isabel Leopoldina, Regente do Império, confirmou a referida exigência.

Como nenhuma destas medidas foi suficiente para expurgar da política brasileira a prática nefasta de favorecer “apadrinhados”, quase cem anos após o advento da primeira norma supracitada, em 29 de junho de 1982, promulgou-se a Emenda nº 22 à Constituição Federal de 1967, que, a par de estabelecer requisitos para a efetivação de substitutos em caráter excepcional (art. 208), “constitucionalizou” a obrigatoriedade de concurso público para o ingresso na atividade notarial ou de registro (art. 207). Por apresentar caráter nitidamente moralizador, este preceito foi mantido na Constituição Federal de 1988 (art. 236, § 3º). Por fim, em 18 de novembro de 1994, foi editada a Lei nº 8.935, cujos arts. 14 a 19 fixam normas para o ingresso nessas atividades.

Apesar destes regramentos, há Estados que ainda hoje não realizam os certames e, na expressiva maioria deles, nomeações interinas e efetivações não precedidas de concurso público são movidas pelos mesmos interesses que ensejavam as doações de cartórios no Brasil Império.

EFETIVAÇÕES INCONSTITUCIONAIS NOS CARTÓRIOS

Com claro intuito de burlar a regra do concurso público, foram criadas, tanto em Constituições estaduais quanto em leis ordinárias, normas estabelecendo alguns requisitos para que os substitutos fossem efetivados, como se a Constituição da República permitisse tal “manobra”. Assim é que foram efetivados interinos que estavam em exercício na data da instalação da Assembleia Nacional Constituinte (RO), na data da promulgação da Constituição Federal (SC, RJ, ES e GO) e na data da publicação da Lei nº 8.935, ou seja, 21 de novembro de 1994 (novamente, SC). Todas essas efetivações foram declaradas inconstitucionais pelo STF, e, portanto, inválidas, em decorrência da afronta ao art. 236, § 3º, da Constituição Federal.6

De fato, o STF, em diversas oportunidades, reconheceu a autoaplicabilidade da norma insculpida no referido dispositivo constitucional, que estabelece a exigência de concurso público para ingresso nos serviços notariais e de registro.7 Nem poderia ser diferente, uma vez que o princípio do concurso público simplesmente decorre da isonomia, direito fundamental dos cidadãos, que encontra assento, inclusive, até na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948: “Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país” (art. 21).

Além disso, a obrigatoriedade de aprovação em concurso público para a obtenção da delegação em comento está imbricada com os princípios republicanos e democráticos que regem toda a Carta de 1988, tais como legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência.

Nítida também é a má-fé dos beneficiados por tais efetivações inconstitucionais, uma vez que, como “profissionais do Direito” que são (art. 3º, Lei nº 8.935/94) têm – pelo menos, deveriam ter – a obrigação de conhecer o texto constitucional vigente e a ele e submeter-se. Nenhum brasileiro, em sã consciência, afirmaria que as efetivações não precedidas de concurso público ocorreram por absoluta boa-fé dos envolvidos, até porque esta deve ser considerada em sua concepção objetiva e não subjetiva.

ATUAÇÃO DO CNJ

Exatamente com o escopo de dar efetivo cumprimento ao princípio do concurso público, cujo desrespeito reflete típica política feudal de apadrinhamento, em 9 de junho de 2009, o Conselho Nacional de Justiça, por intermédio de sua Corregedoria, declarou vagas milhares de serventias notariais e de registro ocupadas por pessoas que não passaram por prévia seleção pública, nos termos da sua Resolução nº 80.

Após essa declaração, os atingidos pela decisão do CNJ impetraram incontáveis mandados de segurança perante o STF, atacando a decisão do Conselho e sustentando, entre outros argumentos, que as suas “efetivações”, embora não precedidas de aprovação em concurso público, ocorreram há mais de cinco anos, motivo pelo qual, nos termos do art. 54 da Lei nº 9.784/99, restariam intocáveis.

Como se pode perceber, uma vez acolhido o entendimento defendido pelos “efetivados”, a regra do concurso público para o ingresso na atividade notarial e de registros estará definitivamente vilipendiada em nosso país, com a convalidação de milhares de nomeações nulas, reedi­tando-se o chamado “trem da alegria dos cartórios”, previsto no art. 208 da Constituição pretérita, e criando-se uma odiosa espécie de usucapião de função pública no Brasil.

De fato, está-se diante de nulidade absoluta, conforme expressamente estabelecido pelo Poder Constituinte Originário no art. 37, § 2°, que, aliás, deve conduzir os agentes públicos que praticaram tais atos à responsabilização por improbidade administrativa. Sob outra perspectiva, estabeleceu o Constituinte que, em eventual colisão entre os princípios do concurso público e da segurança jurídica, deve aquele prevalecer, podendo este ser aplicado, tão somente, para efeito de não se exigir dos efetivados irregularmente, salvo comprovada má-fé, a devolução aos cofres públicos dos emolumentos que perceberam no período e para possibilitar a convalidação dos atos por eles praticados perante a população.

Aliás, mutatis mutandis, foi exatamente esse raciocínio que levou o Tribunal Superior do Trabalho a publicar a Súmula nº 363 de sua Jurisprudência Uniforme, muitas vezes já apreciada e considerada constitucional pelo STF, in verbis: “A contratação de servidor público, após a CF/88, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, inciso II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário-mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS”. (Grifo nosso.)

A TESE DA DECADÊNCIA ADMINISTRATIVA E O PAPEL DECISIVO DO STF

Exatamente em razão de as nomeações sem certame vulnerarem frontalmente o que estabelece o texto constitucional é que o CNJ, a Procuradoria-Geral da República e a Advocacia-Geral da União, em muitos casos, rechaçaram a tese da decadência administrativa para a revisão de tais atos, o que, porém, parece ainda não ter convencido totalmente o STF. Conquanto a Suprema Corte também tenha afastado a absurda validade da tese no julgamento do Mandado de Segurança nº 28.279-DF, sob relatoria da Ministra Ellen Gracie, ocorrido em 16 de dezembro de 2010 (DJe 29.04.11), está apreciando novamente a matéria nos autos do MS nº 26.860-DF. Nesse último writ, o Relator, Ministro Luiz Fux, repeliu a decadência; a Ministra Rosa Weber divergiu e, logo após, o julgamento foi suspenso por força de pedido de vista formulado pelo Ministro Dias Toffoli.

É inconcebível que os demais componentes do Excelso Pretório não encontrem inspiração nas sábias palavras proferidas pela Ministra Ellen Gracie, ao relatar o leading case julgado em 2010:

Imbuídos de espírito genuinamente republicano, nossos Constituintes romperam com a tradição política feudal de atribuições de titulações de cartórios.

A Constituição de 1988 instaurou a legitimidade em relação ao provimento das serventias notariais e de registro em nosso país.

É que vivíamos, até a promulgação da atual Constituição, como se estivéssemos ainda no Império. As titularidades de cartórios equivaliam, na prática, a algo parecido às extintas concessões de baronato, criando-se uma espécie de classe aristocrático-notarial, atualmente inadmissível.

Hoje um jovem de origem modesta também pode sonhar em ingressar em tão importante atividade, sem depender de favores de autoridades, bastando para tal desiderato vocação e dedicação aos estudos jurídicos.

A esta Suprema Corte foi legada a maior de todas as missões: ser a guardiã da Constituição da República Federativa do Brasil. Como juízes da mais alta Corte de Justiça deste país, não podemos e não devemos transformar a Constituição em refém de leis e de interpretações contrárias ao espírito da própria Lei Maior.

Os princípios republicanos da igualdade, da moralidade e da impessoalidade devem nortear a ascensão às funções públicas.

Os milhões de brasileiros e brasileiras que se debruçam diariamente sobre livros durante horas a fio a estudar em busca de um futuro melhor não merecem desta Suprema Corte resposta que não seja o repúdio mais veemente contra esses atos de designação ilegítimos.

A tese defendida pelo impetrante faz letra morta do art. 236, § 3º, da Constituição Federal, que estabelece a exigência de prévia aprovação em concurso público para o ingresso na atividade notarial e de registro, razão por que não deve ser acolhida pela Corte.

O que se busca no presente writ é, em verdade, o reconhecimento de uma espécie de usucapião da função pública de notário ou registrador, pretensão inadmissível. (Grifos nossos.)

Assim, a prevalecer a tese da decadência administrativa, o STF, a um só tempo, desrespeitaria o princípio da separação entre os poderes (art. 2°, CF), uma vez que não poderia, até por falta de legitimidade democrática, contrariar a nulidade dessas nomeações estabelecida pelo Poder Constituinte Originário no art. 37, § 2°, e transformaria em regra meramente utópica a republicana exigência estatuída no art. 236, § 3º, todos da Constituição.

Como se pode perceber, quase cento e trinta anos (!) após a primeira norma brasileira exigindo prévio concurso público para o ingresso nas atividades notariais e de registros, o Poder Judiciário, pela sua mais alta Corte, ainda debate se dará ou não efetiva força normativa a tal mandamento. Vê-se que não é somente nas obras de infraestrutura para a Copa de 2014 que o Brasil precisa de um forte impulso para ir adiante. A “bola”, nesse caso, está mais uma vez com o Supremo Tribunal Federal.

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