POR JOSÉ ARBEX JR.
Quem são: Hamid Abdullaj Shehab, Najla Mahmoud Haj, Khalid Hamad, Ziad Abdul Rahman Abu Hinal-Ketab, Ezzat Duheir, Bahauddin Gharib, Ahed Zaqqout ........ Simone Camile e Abdullah Fadel Murtaja? O jornal do Brasil de Fato responde: eram jornalistas. Foram assassinados por Benjamin Netanyahu, durante o massacre de Gaza, entre junho e julho de 2014, junto com centenas de crianças, mulheres e cidadãos palestinos. Mas ninguém sabe nem ouviu falar. E por que alguém se importaria? Eram árabes. Trabalhavam para meios árabes [exceto Simone, fotógrafa da Associated Press] e cobriam o massacre do "lado errado" das barricadas. Finalmente, a maioria era também muçulmana. Lixo. Puro lixo.
Nenhum grande meio de comunicação no mundo dito "ocidental" acusou o primeiro-ministro israelense de ser um inimigo da liberdade de expressão. Apesar do fato amplamente conhecido de as emissoras de TV e rádio da Palestina ocupada serem, rotineiramente, alvos prioritários das incursões militares israelenses. Mas, ainda assim, Netanyahu não mirou nos jornalistas árabes. Eles morreram por acidente, "efeito colateral". Não era intenção dos israelenses assassinarem jornalistas, crianças, mulheres e civis. Longe disso. Assim como nunca foi intenção de Barack Obama executar gente inocente, no Paquistão, Afeganistão e Iêmen por meio dos drones. Tampouco a "nossa" PM mira a população indefesa, que vive nas favelas, morros e bairros da periferia. A morte de inocentes, nesses casos, é um resultado marginal da "guerra ao terror" [ou ao narcotráfico, ao banditismo, às gangues]. Porque, é claro, os nossos valores ocidentais são elevados. Elevadíssimos.
Em nome da civilização, os mais ínclitos representantes políticos de nossos elevados valores ocidentais lançaram as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki, em 1945, matando dezenas de milhares de crianças, mulheres, idosos, gente que nada tinha que ver com as operações de guerra no Pacífico. Despejaram milhões de toneladas de explosivos, fósforo branco e Napalm sobre populações inteiras de camponeses no Laos, Vietnã e Camboja, nos anos 60 e 70. Promoveram golpes de Estado e instalaram ditaduras sangrentas em toda Ásia, Oriente Médio, África e América Latina, durante o período da Guerra Fria. A civilizada França fazia experimentos químicos com a população da Argélia, nos anos 50. Em pleno século 21, os Estados Unidos legalizaram a tortura, agora qualificada como "técnicas especiais de interrogatório" [em Israel, aliás, a prática da tortura é legal]. Tudo muito civilizado.
E aí, em 1974, veio a público o civilizadíssimo general William Westmoreland, comandante das tropas derrotadas dos EUA no Vietnã, para explicar aos produtores do documentário Corações e Mentes que a matança no sudeste asiático não era tão grave assim, porque "o oriental não atribui o mesmo valor à vida que o ocidental. Nós valorizamos a vida e a dignidade humana". Tudo certo. Netanyahu e Obama não são agentes da barbárie, de modo algum, mas os irmãos Kouachi, ah, estes sim merecem o nosso ódio. Feriram os "valores ocidentais" ao assassinarem a equipe do Charlie Hebdo, em 7 de janeiro. O que foi o pequeno, o insignificante massacre de Gaza comparado a isso?
A cobertura do atentado de Paris feita pelos mais importantes meios de comunicação apaga o contexto histórico, ideológico e cultural que criou os irmãos Kouachi. Tudo se passa como se num dia qualquer, tomados de ira sagrada, pegassem em armas para cometer um ato sem sentido. Ignora-se o pano de fundo, todo o jogo de relações geopolíticas, políticas, econômicas e financeiras que vincula, de modo inextrincável, os governos "ocidentais", as monarquias e ditaduras árabes aos grupos terroristas e fundamentalistas. Os EUA criaram a AL QAEDA, Israel criou o HAMAS e ambos concorreram para o surgimento do ISIS, entre outras coisas. Nada se diz, tampouco, sobre como o atentado foi suspeitosamente oportuno para o ridículo presidente francês François Hollande[subitamente guindado à condição de porta-voz dos direitos humanos]; para Obama [agora, com as mãos livres para rearticular iniciativas militares no Oriente Médio] e para Netanyahu [Gaza ficou longe, no passado].
Nada disso aparece no noticiário. As coisas são assim: os Kouachi cometeram atentado porque... ora, porque "eles" - os islâmicos - fazem coisas desse tipo. O tom de histeria anti-islâmica que marcou a cobertura revela a construção - ou melhor, a radicalização - de uma perigosa e inaceitável cisão artificial entre "nós" - herdeiros da cultura judaico-cristã ocidental - e "eles" - árabes, islâmicos, orientais, enfim, aquele bando de fanáticos obscuros que dão pouco valor à vida.
Assim como o 11 de setembro de 2001 abriu as comportas da "guerra ao terror" e permitiu a implantação de uma legislação de exceção nos EUA [o Decreto Patriótico], o novo atentado alimenta e amplia perspectivas reacionárias na Europa [a começar pelo impulso às correntes da extrema direita que propõem a expulsão dos imigrantes islâmicos, passando pela abolição do Tratado de Schengen, que, adotado pela União Europeia, em 1997, abriu as fronteiras para o trânsito entre os seus cidadãos, uma das poucas realizações progressistas da aliança]. É uma cisão que opera no mesmo registro da campanha racista produzida por Adolf, na Alemanha nazista. O resultado foi Auschwitz.
Nada de novo no front. Apenas ganha alento o estúpido "conceito" de "choque de civilizações", proposto pelo orientalista Bernard Lewis e vulgarizado pelo execrável Samuel Huntington. A reação racista ao atentado atualiza a rejeição ao Islã como o "outro" abominável da Europa - que o diga o papa Urbano II [1042-1099], inspirador da Primeira Cruzada. Nada poderia ser mais esclarecedor, a esse respeito, do que a recusa da Democracia Cristã, sob orientação do Vaticano, em admitir a Turquia, antiga sede do Império Otomano, no interior da UE. Para a Igreja Católica, "Europa" e "cristandade" são e devem ser sinônimos.
No atual contexto, a frase "sou Charlie" aprofunda a cisão. A ela deve se contrapor a rejeição a todo e qualquer terrorismo - incluindo, principalmente, o praticado pelos estados - em nome dos valores que integram a humanidade não dividida, em seu conjunto. Em síntese: sou humano [não por acaso, ponto de partida e de chegada de Karl Marx].
fonte: CAROS AMIGOS, nº 215/2015, pág. 9
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